3 de fev. de 2012

Movimento do corpo, estar na rua. Movimento da rua, estar no corpo.

por Ângela Guerra Monteiro (Zagueira do Baixo Bahia Futebol Social) e publicado no Terrorismo Branco

Espaço “Miguilim”. Lugar que acolhe crianças e adolescentes da cidade de Belo Horizonte com trajetória de rua. Espaço aberto para a entrada e saída desses meninos que decidem por sua circulação. Lugar escolhido para fazer acontecer o laboratório “Entre as fronteiras das práticas socioeducativas”. Em muitos encontros, ou melhor, em todos os encontros, se posso dizer, estes meninos vão e vem. Entram e saem das conversas e do espaço. O Laboratório decidiu se fixar nesta instituição, mas os meninos, não. Os meninos saem de seus lugares, mas não sabemos se saem de algum “lugar”, se mudam de posição, do modo como se apresentam. São crianças e adolescentes que sabem da rua. Circulam neste espaço tão amplo da cidade que oferta o que está sem véu. E porque circulam no espaço “Miguilim”? Que uso fazem deste espaço? O movimento é pulsante, a pulsão é incessante. O movimento é para além da pulsão, quando esses meninos apresentam um saber sobre sua circulação. São sujeitos-suposto-saber de seu corpo. Sujeitos que habitam seu corpo. Sabem por onde andam, sabem das ofertas do Outro. Como Miller diz quando fala da “alma…ela não é outra coisa que o saber no corpo, um saber que assume a forma de sujeito do corpo” (JAM, 1999)[1]. Mas, esses meninos também se apresentam para dizer com o corpo que o Outro não existe. O incessante movimento, o entra e sai dos lugares, do espaço, da conversa, escancara a falta de crença no Outro, a falta de uma aposta que pode dar consistência ao Outro. É entre outras coisas o que Miller e Laurent desenvolveram em seu curso em 1995[2].

É preciso um destino para o movimento para poder operar algo do sintoma que incomoda, que diz do que não vai bem, mas que aloca o que perturba e que não cessa de se apresentar. Então, seria neste movimento do corpo que as crianças e adolescentes que circulam no espaço “Miguilim” podem encontrar respostas, soluções para seu desencontro, a língua apropriada, suas gírias, seus códigos. E, deste modo, a fantasia toma lugar nas produções. Como afirma Lacan sobre a fantasia: “a obra de arte de uso interno do sujeito”[3]. A qual “arte” estes meninos poderiam ser convidados a produzir?

Na rua, a orientação é “tem que se virar”, sujeito com sujeito, o Outro social solto, às vezes, abusado, às vezes, abandonado. Isso é da rua. Os sujeitos respondem com o movimento do corpo frente ao não saber que enlaça? Ou não enlaça? A rua parece não se apresentar como uma instituição e o “Miguilim” é uma instituição, na qual as crianças e adolescentes se servem dela no movimento, no “ir e vir”: Como então podemos pensar nestes espaços, “Miguilim” e Rua? Existe uma fronteira entre estes espaços? Em que constituiria esta fronteira?

Há uma disfuncionalidade no movimento. Há o não instituído que promove o movimento. As instituições buscam enquadrar o movimento no modo da regulação do funcionamento. A que se serve a instituição que se reproduz? É um modo institucional de gozo. É a orientação do gozo institucional e não da política de atendimento aos direitos da criança e do adolescente. É preciso abrir espaço para o gozo a ser tratado. Diferente do gozo que orienta a política. É se orientar por uma instituição S1 como significante mestre. A reprodução da instituição pode reproduzir sujeitos sem invenção? Ou reproduzir respostas do Outro sem sujeito?

E para continuarmos pensando: a rua então seria uma não-instituicão? Vários ali, com suas singularidades e a rua como um espaço compartilhado. Seria a rua, um espaço de não-lugar como trabalha Marc Augé[4]? Um lugar sem laços, um espaço sem laço? Circulam por ela fazendo um percurso e um uso próprio ou se deixam levar por algo do semelhante. Esses meninos parecem não saber-fazer com os desencontros. Sabem coisas do mundo, do que vira notícia, das leis, dos abusos e dos excessos. Ora escolhem este modo de vida, via gozo, assim podem se irresponsabilizar.

Parece que esses sujeitos são do movimento ou se interessam por ele. Como então fazer deste movimento uma história de pulsão de vida, com tropeços, desencontros e tumultos, porque disso não se escapa. Isso é o que escapa a qualquer regra ou controle. Como continuar no movimento enlaçado pelo desejo? Como convidar a fazer descobertas sobre o movimento desconhecido do corpo a partir do uso do espaço?

[1] MILLER, J.A. Elementos da Biologia Lacaniana. EBP-MG, 1999.

[2] MILLER, J.A. e LAURENT, E. O Outro que não existe e seus comitês de ética, 2005.

[3] LACAN, J. O objeto da psicanálise, 1966.

[4] AUGE, M. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas: Papirus, 1994.

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