27 de fev. de 2012

Carnavalizar o urbano. Avante BH!





Carnavalizar o urbano. Avante BH!

Joviano Mayer[1]

“Vai passar nessa avenida um samba popular. Cada paralelepípedo da velha cidade esta noite vai se arrepiar. (...) Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar a evolução da liberdade, até o dia clarear. Ai que vida boa (...)”[2]

É na cidade medieval, inserida no contexto do mal chamado “período das trevas”, onde nasce o carnaval como o conhecemos no ocidente, antecedendo o período da quaresma. Essa mesma cidade acolheu os servos que fugiam da opressão do feudo para se organizarem em corporações de ofício. O assalariamento, a grande indústria e o próprio capitalismo vieram em seguida e aniquilaram o associativismo e as relações forjadas até então com o espaço produzido. A cidade, gradativamente, reproduziu as contradições sistêmicas da nova ordem social, mercantilizou-se para ser vendida aos pedaços, um produto e não mais uma obra genuinamente humana. O privado se revoltou contra o público e a festa, antes na rua, torna-se fechada, privada.

Porém, a cidade, talvez a maior invenção da humanidade, recobra sua condição originária, ambiente da felicidade e da realização pessoal, lugar em que foi possível concentrar “os milagres da civilização moderna”[3] e atrair bilhões de pessoas em todo o planeta. Sem dúvida, a luta pela cidade possui hoje uma dimensão revolucionária e, por que não, emancipatória. Um grande marxista[4] diria que o futuro da sociabilidade humana depende do futuro da sociabilidade urbana.

Nesse ponto retomamos o carnaval, na urgente luta pela cidade como cenário da festa, da felicidade, do encontro, a cidade como valor de uso e não mercadoria, coletivamente produzida, coletivamente apropriada. O carnaval de rua da cor à cidade cinza e poluída, faz da rua a continuidade da casa, tal como deve ser. Das janelas, velhas solitárias admiram os blocos, jovens atiram água sobre os foliões, crianças abrem os portões e vão à rua sem receio dos carros ou da violência. A privacidade silenciosa, seja no quarto ou no escritório, é contestada pelo som dos tamborins. O carnaval de rua também trás consigo contradições, pois é refém de uma sociedade cheia delas, mas isso não lhe retira a beleza e seu potencial.

Ouso dizer que uma revolução verdadeira também deve ter como horizonte imprimir a festa na cotidianidade do urbano, e o carnaval é uma grande festa. Em Belo Horizonte, o carnaval de rua permitiu em certa medida a (re)ocupação do espaço público, a socialização da gente e a contestação do poder constituído. Nem o reto do prefeito empresário, nem a coxinha da madrasta[5] restaram imunes.

Nessa mesma cidade, há quatro anos ocorre sob um viaduto o encontro massivo da juventude do morro e do asfalto em duelos de hip hop, nos quais há duras batalhas sem qualquer violência[6]. Os indignados com os impactos da copa do mundo promovem “peladas” em praças públicas. Mas durante o carnaval as manifestações artísticas e políticas foram embelezadas com purpurina, fantasias e tambores. Os blocos, organizados sem patrocinadores oficiais, ganharam as ruas e fizeram milhares de pessoas experimentar a cidade como valor de uso. Ah! E como foi bom...

Mas é preciso estar atento! “Os moralistas querem impor sua conduta”[7]. Para ser mais direto, o capital almeja mercantilizar a festa, apropriá-la como grande negócio e conferir ao carnaval um rentável valor de troca, seja dentro ou fora do eixo. Em alguns lugares, o humano coisificado em muros separa os foliões brancos das pipocas pretas. Noutras cidades, paga-se pelo ingresso, pelo desfile, pela transmissão exclusiva, enquanto milhões prestigiam passivos pela TV.

De todo modo, em nossa cidade, (re)nasce algo diferente, ainda imune à restrita lógica da reprodução ampliada. O recente fenômeno segue estritamente vinculado à rua, ao ambiente público (re)apropriado pelas pessoas, com fantasias e apetrechos, invertendo os sexos, as morais e as leis. A polícia não sabe o que fazer, pois os citadinos não estão bravos, mas sorrindo, não brigam, beijam-se libertinos, não portam armas, mas tambores, pirulitos e flores, além do que, não são apenas negros, são de todas as cores – e quantas cores!

Se liga, autoridade! Para um povo que fez da praça privatizada uma linda Praia, não é impossível fazer da cidade uma linda festa, onde caibam todos e todas!


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[1] Militante das Brigadas Populares que pulou, amou e fez política no inesquecível carnaval (não oficial) de Belo Horizonte.

[2] Música Vai passar, composição de Chico Buarque.

[3] ENGELS, Friederich. A questão da habitação. São Paulo: Acadêmica, 1988.

[4] PAULA, João Antônio de. As cidades e A cidade e a universidade, in As cidades da cidade. Belo Horizonte: UFMG, 2006.

[5] Referência às marchinhas da Praia da Estação e da Coxinha da Madrasta.

[6] Referência ao Duelo de MC’s promovido pelo Coletivo Família de Rua, debaixo do viaduto Santa Teresa, em Belo Horizonte, toda noite de sexta-feira, sem qualquer apóio da Prefeitura.

[7] Marcha do bloco da Alcova Libertina.








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