21 de out. de 2006

Marcelo Ferrari: Não leia poesia


Conhecem a metáfora da vaquinha? Pra quem ainda não conhece, preciso contar (resumidamente). Um sábio e seu discípulo, procurando um lugar pra dormir no meio da noite, foram recebidos pelos moradores de um casebre. "Com vocês vivem aqui se não há plantação?", perguntou o sábio ao pai da família. O homem respondeu: “Nós temos uma vaquinha e com o leite fazemos queijo e manteiga". No dia seguinte, o sábio e o discípulo agradeceram a hospitalidade e seguiram viagem. Quando se distanciaram muitos metros da casa, avistaram a vaquinha pastando ao lado de um precipício. O sábio se aproximou e chutou a vaquinha no abismo. O discípulo ficou inconformado, mas o sábio não disse nada, prosseguiu em silencio. Passados alguns anos, o discípulo voltou pra ajudar aquela família que havia sido tão hospitaleira. Qual não foi seu espanto ao ver o barraco transformado numa deslumbrante casa de fazenda. Ao reencontrar o pai da família, perguntou o que havia acontecido, ele respondeu: “Naquele mesmo dia em que vocês foram embora, nossa vaquinha caiu no precipício. Pra sobrevivermos, começamos a plantar. Primeiro plantamos legumes, depois frutas, depois cereais e olha só tamanho da lavoura. Nunca tínhamos nos dado conta de como a terra aqui é fértil.”Mas porque contei esta história? Porque leitores práticos, geralmente discípulos da eficiência 9000, conhecem esta história da vaquinha e costumam me perguntar pra que serve a poesia. Eu poderia virar as costas, como fez o Cristo, ou então, dizer que serve pra nada, ou melhor, pra nadar, uma vez que sem o vazio não há eficiência no mundo capaz de encher um copo cheio. Mas, como na prática dos práticos, nada é nada e não enche nada, só enche o saco, eu inventei este jeito poético de chamar a criatividade de “erro”. A poesia entra nesse fenômeno: na capacidade humana de errar. Assim, minha resposta é: um poema é um texto errante e um texto errante serve pra chutar a vaquinha do leitor.Arremessar no abismo as estruturas arcaicas de nossas sinapses, é o grande crime de um texto errante. Ele não tem a missão de nos ensinar o bê-á-bá das coisas, nem de nós dar o leite convencional pra fazermos manteiga, o objetivo de um texto errante é declaradamente destruidor e fora da lei. É por isto que os rotulamos de filosofia-que-não-enche-barriga, poesia-inútil, literatura-que-não-é-realidade e os aprisionamos nas prateleiras das casas e bibliotecas. Alguma vez você já foi ao dentista e encontrou um livro da Clarisse Lispector, do Carlos Drummond ou do Fernando Pessoa na sala de espera? E se encontrasse, pegaria ele ou o jornal? Texto errante não vai ao dentista, ao escritório, e, atualmente, nem mesmo a escola. Texto errante é textona-no-grata.Pra “aparente” infelicidade dos leitores práticos, um texto errante é como uma bala perdida. Não sabemos de onde vem ou porque vem, tudo o que sabemos é que fomos atingidos por um. Depois, assim como o impacto de uma bala perdida, um texto errante também nos faz pensar no destino. Porque aconteceu comigo? O que fiz pra receber este castigo? Nem tão castigo assim. A bala mata a matéria, mas liberta o espírito, o texto errante fere o certo, mas livra a mente da repetição. Usando o pontapé de um mau aluno (Rubem Alves), diria que um texto errante, quando lido, é como um grão de areia que entrou na nossa ostra. Ao primeiro contato, parece ter a única e irritante missão de incomodar, mas com o tempo e a reflexão, o que era irritação se transforma em rara pérola. Assim, a não ser que você esteja preparado pra perder sua vaquinha e passar a produzir pérolas, aceite meu conselho: não leia poesia!

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