4 de nov. de 2008

samba de uma vida só.

o samba? descobriu foi atrás da porta.
escondido, que o pai não achava decente.
não queria a filha mexendo com essas coisas de preto.
mas tinha uma tia, e ainda por cima madrinha, que se balançava toda como que a anunciar: sambar não é para qualquer mulher, tem de ter peito. E ela tinha, uns enormes. A mulher criança não teve dúvidas, também teria. E sambou.
o morro? chegou antes.
subiu a primeira vez foi na barriga da mãe.
depois, a mãe-de-leite, preta de grande peitaria e inúmeros filhos, também morava no morro. E lá ia ela subindo o morro todo dia, no balanço do cavalo entre os braços do pai.
no morro é que tinha o melhor: o ribeirão, o céu mais estrelado, os pés de manga, o cheiro de jaca, os primos-irmãos, os forrós no terreiro, a primeira escola - de barro batido, a primeira professora - a própria mãe.
na cidade, morava no morro, o da igreja. ele desaguava em uma pracinha que no Natal tinha presépio e nos outros dias tinha sorvete.
depois cresceu. Quis ir embora. Escolheu as montanhas e vivia a dizer: eu ainda vou subir o morro. Mas, nem um de seus ônibus ia para lá.
depois, precisou ir embora. Escolheu percorrer as bandeiras. Encaixotou os livros, ensacolou os edredons, bordou panos de prato. As roupas nunca foram muitas, preferia ir ao cinema.
lugar estranho, o rio num corre pro mar, os morros vestem barracos, os mortos são desconhecidos, a vida da gente parece que é só da gente.
foi no trem que a vontade acordou e ela entendeu: era ali que subiria o morro.
as latas na cabeça e as agonias, a lama no sapato e o vento frio, a fumaça do fogo feito de madeira verde, a negra de sorriso branco, o homem de chapéu de couro, o cansaço da invisibilidade, o desejo de viver substituindo o feijão com arroz, as balas envenenadas, as crianças violadas, as gentes ignoradas.
'desde que o samba é samba é assim'.
ela entendeu. e sambou.

(Liliane M. A. Silva)

Nenhum comentário: