23 de mai. de 2009

memorial

ficou
do ribeiro, o que já era: pedra.
do cafezal, o que plantou: dinheiro.
da casa de esteio preto e parede branca: retrato.
do moinho de milho: os fantasmas.

mas, não morreu. restou lembrança.
tudo junto: laranjeiras, as quatro Romas, belos horizontes,tamanduateís e anhagabaús.

(Liliane M. A. Silva)

do quê

vou escrever um dia.
palavras lindas, puras, finamente entrelaçadas, corretamente pontuadas.
vou escrever um dia.
linhas puro-sangue.
alazão.
sem chances para o azarão.
vou escrever um dia.
iluminismos revestidos de barroquinas palavras.
dourados ortodoxos, lírios diáfanos, páginas chinesas.
vou escrever um dia.
virar poeta, ser sacerdotisa, escriba do que não sei.
vou me deter um dia,e esperar a inspiração.
vou me deitar um dia, me desmanchar em ilusão.
vou escrever um dia.
palavras ocas, roucas. todas de toucas, de tocaia.
linhas violáceas se dissolvendo em plúmbeo céu.
vou escrever por um dia
fazer chover três, dormir dez, comer vinte, ler tudo, morrer zero.
vou escrever.
um dia.

(Liliane M. A. Silva)

primícias de uma poeta

asdfg
çlkjh
qwert
poiuy

em cima os dedos não alcançavam
em baixo se embaralhavam.

pensou: falta disciplina.

sem saber, sentia:
já preferia as mil vãs filosofias.

(Liliane M. A. Silva)

bobagem

ponto meia ponto
ponto ponto meia
meia ponta
ponta e meia
meio meia
meio ponto
ponta e meia
meio pronta
meia ponta
pronto meia pronta
pronto ponto meia
a meia aponta
o ponto pronto

(Liliane M. A. Silva)

destelhamento

pó em eiras
chão sem beiras
azul esmaecido

zumbido fora
tambor na alma
baque final.

(Liliane M. A. Silva)

16 de mai. de 2009

aff

tem dia que é de pão.
tem dia que é de festa.

tem dia.

melhor não.

(Liliane M. A. Silva)

não lavei a roupa
não pendurei a roupa

só varri o quintal
tomei vinho
fiz pão.

quis perguntar se isto é poesia.
mas, é só a vida.

(Liliane M. A. Silva)

c'est la vie

nem edith piaf
nem fazer pão
nem pensar
nem lavar vasilhas
nem feijoada


quem sabe, Deus?

(Liliane M. A. Silva)

ao pó voltarás

tudo ali.
cds
vinho
remédios
óculos para dias de (muito) sol
prestobarba para belas pernas

se poesia
se caos
se não
se sim

no Real, não faz diferença.

(Liliane M. A. Silva)

canoas

edith piaf
zeca baleiro
kleiton e kledir
de quantos cantores é?

pão de abóbora
feijoada
queijos todos
de quantos comeres é?

vinho tinto seco
suco de cupuaçu
água fresquinha
de quantos beberes é?

camisola negra
camiseta velha
vestidos longos mil
de quantos vestires é?

pai, mãe, irmãos, sobrinho
amigos
JR
de quantos amores é?

chuva
dia frio
verão na beira do mar
de quantos ventos é?

Emmanuel
Manuel de Barros
Cecília Meireles
de quantos escritos é?

de quantos paus se faz?

(Liliane M. A. Silva)

15 de mai. de 2009

ESCCA



“Estou com muito medo do que vai ser agora,
estou no abrigo desde
que meu pai foi preso por mexer comigo,

Eu tinha 13 anos.

Minha mãe morreu doente,
fiquei sozinha com meus irmãos e meu pai,
não era bom,
meu pai não é bom comigo,
Entendi que não é culpa minha ele estar preso.

Desde que eu brincava de não podia falar,
mas meu pai gostava de brincar de boneca comigo,
ele era legal,
brincava horas enquanto minha mãe trabalhava,
mas agente nunca podia
contar pra ela o que a boneca fazia.

Me sentia mentindo pra minha mãe,
queria que ela brincasse também,
meu pai não deixava.
Meu pai gostava de mim...
Um dia a noite depois de todo mundo dormir
ele queria brincar comigo,
mas eu não queria mais,
a boneca estava chata,
pedi para não brincarmos,
eu estava com sono,
foi quando minha mãe abriu a porta e
meu pai bateu nela.

Ela não falou comigo, me senti mal,
mas ela não falou mais com ninguém em casa,
tive que vir pra cá e ela morreu.
Sinto falta e queria pedir desculpas a ela.

To com medo de sair daqui,
não quero casar, nem ter filhos,
vou ser sozinha agora,
não quero ninguém cuidando de mim,
não vou casar, não vou ter filhos,
não sei o que vou ser.”
(Fragmento ficcional a partir da experiência dos Educadores do
CEDECA Interlagos)

Indiferença. Omissão. Medo:
é o que fazem crianças contarem esta história. Histórias como estas acontecem todos os dias.

O que podemos fazer?
O que você pode fazer?

O MOVIMENTO É CULTURAL E A POLÍTICA É PÚBLICA

10 de mai. de 2009

CEDECA Interlagos - Formação Interna

Pequenas Mãos

Pequenas mãos
(Adriana Oliveira)

Pequenas mãos são feitas de sonho e temor
Mãos pequeninas são para pequenos acenos
Para chuva de criança
Feita com tilintar de dedos

Nas mãos pequeninas cabem compaixão e medo
Se unem as pequenas mãos
Numa prece miúda
A pedir que o mundo não machuque
Não machuque ninguém

Breve tormenta, constante garoa
Qual a maior resistência?
Mãos pequeninas sobrevivem a ferimentos
Constroem, destroem

Outrora, foram as mãos dos
Meninos a modelar bocas de fuzis
Dedinhos inocentes e preciosos.

As mãos dos pequenos seguraram a dor da guerra.

Mãos pequenas podem produzir fogo ou artefatos delicados.
Mãos como as do cantor Victor Jará eram diminutas estendidas no chão,
Diante à desumanidade de calá-las
Essas pequenas mãos cantaram e cantam o provo até hoje.

Mãos pequenas seguram a história
Parecem ter sempre amarrada ao dedo mínimo uma rabiola de esperança.

Pequena música
Pequeno aceno
Pequeno movimento
Mistura-se na imensidão da totalidade
Janela aberta pequenina
A permitir entrar somente o pásssaro
Do canto mais profundo do mundo

Sangüíneas
Perduráveis

Mãos pequenas quebram-se fácil
Têm surpreendente recuperação
Pequenas mãos medem pouco
Por vezes calculam menos
Enroscam-se em fios
A encontrar mãos enormes
Carregam fardos
De outra, não suportam o peso da bandeira
Mas tem medidas precisas para agarrar a haste
São delicadas para costurar cores
Desperta e ágil a tingir o vermelho
Palmas pequeninas na canção da multidão
Ligeiras e providenciais no tumulto


Mãos pequeninas apertam mãos ásperas
como quem entende a história do mundo
Escrevem, porque a caneta cabe perfeito
Pequenas mãos colorem delicados detalhes
e propagam as imagens mais intensas
guardadas no fundo dos olhos

Chama pequenina
Pequenina gana
Beatifica essas mãozinhas
Para que elas segurem minha alma.

entre

goteira infeliz
rio na parede
luz entretelhas

a poesia, de vida mambembe
faz a tradução:

sonzinho da chuva
cascata no quarto
a lua vem visitar.

um dia os ímpios dirão:
que bela vida!

um dia, talvez, a poesia terá vencido.
feito sentido.


(Liliane M. A. Silva)

pomar

me falam em finuras

no falar
no agir
no andar

ainda vá lá.

nem me falem em finuras
no comer
no amar
no viver

viver exige
jaca
goiaba
angu
torresmos
taioba
manga.

canapé serve para vernissage
rapadura para o dia a dia.

(Liliane M. A. Silva)

elipse

geleiras
aquíferos
cinco graus
e tudo vai pelo ralo

a ralé ficará debaixo d'água
insetos serão os exércitos
metrópoles, desertos

catástrofe
fim
aguardado
sabido
sequer adiado

geleiras
aquíferos
cinco graus
elipse das primícias.

(Liliane M. A. Silva)

se aqui voltar

ó sinhô
se vim foi pra dizer
que num tem palavra, não.

num teve linha que fizesse nó.
agulha tomou ferruge na caixola.
da mão, só restou aceno de adeus

ó sinhô,
ieu sei que foi prometido
e que cumbinado num é caro
mas o sinhô há di intendê
que só sabe de todas as linhas do amanhã
aquele que sabe também todas as de ontem.

ieu fiquei de contar
fiquei de pensar
fiquei de explicar

mas que vou fazer?
explicação não tem
pensar já parou
contar é demais.

eu vim foi para dizer
tem palavra não.
vou voltar lá
ficar só no viver.
o que posso prometer
é que se acaso um dia
aparecer letra que faça ponto
aqui voltar e palavrear

(Liliane M. A. Silva)